O equilíbrio entre os Poderes da República parece
estar irremediavelmente rompido: não importa o que o Congresso Nacional
decida, se o assunto for levado à alçada do Supremo Tribunal Federal, a
decisão pode ser revertida, obstada, paralisada, anulada.
Washington Araújo (*)
Alguma coisa não vai bem na administração da justiça no Brasil.
E
não vai bem porque o equilíbrio entre os Poderes da República parece
estar irremediavelmente rompido: não importa o que o Congresso Nacional
decida, se o assunto for levado à alçada do Supremo Tribunal Federal, a
decisão pode ser revertida, obstada, paralisada, anulada. É a
judicialização do processo legislativo e não da política, essa ciência
muitas vezes abstrata, sem nome e sem rosto. Acontece que o processo
legislativo brasileiro não é abstrato, tem os nomes e os rostos de 81
senadores e 513 deputados federais.
Apesar
de todo o arcabouço em que são criadas, debatidas e colocadas em
votação as leis brasileiras, tanto no âmbito do Senado Federal quanto no
da Câmara dos Deputados, ainda assim tem sido prática recorrente a
subversão do devido processo legal: os parlamentares descontentes com
decisões do Congresso, ou de uma ou outra das Casas Legislativas, podem
simplesmente protocolar alguma ação de inconstitucionalidade no STF e,
atuando assim, tocam o terror da insegurança jurídica, eivam de
suspeição matéria lidimamente aprovada no Poder Legislativo, suspendem
os efeitos da nova lei e extravasam nos meios de comunicação a posição
deste e daquele magistrado da Suprema Corte, quase sempre gerando mais
confusão e sobreposição de poderes, além de lançar as sementes da dúvida
quanto à lisura do processo legislativo e a supremacia final e
irrecorrível do Poder Judiciário.
O
STF tem se autoinvestido de funções não previstas no Texto
Constitucional de 1988: o de ser o Senado do Senado. Assim, como o
Senado é também Câmara Revisora de matéria legislativa aprovada na
Câmara dos Deputados, o Supremo Tribunal Federal vem atuando como órgão
autônomo, que traz para si a decisão final sobre o mérito e também sobre
a condução do processo legislativo em si. E a sanha para se imiscuir em
temas que não são de sua alçada decisória parece não ter limites, não
respeitando nem os ritos de legalidade e menos ainda a segurança do bom
senso.
É
assim que o STF se acha investido do direito de cassar mandatos
populares conquistados em pleitos democráticos, secretos e de universal
sufrágio. É assim que o STF, para proteger um ou outro Estado da
Federação produtor de petróleo, investe contra a decisão – que deveria
ser soberana - do Congresso Nacional que nada mais fez que contemplar os
interesses maiores da nação e não apenas os interesses nem sempre
lídimos de uns poucos entes federados. Chama a atenção que a decisão
monocrática de apenas um único ministro do Supremo possa suspender os
efeitos de uma lei aprovada em tese por nada menos que 81 senadores e
513 deputados federais. E há abusos sempre que uma esfera desconhece
ostensivamente a existência de outra esfera de poder. É nesse lago de
águas paradas que viceja os autoritarismos e se torna combalida a
segurança jurídica, social e política que toda sociedade moderna deve, a
todo custo, preservar e manter.
Causa
espécie constatar que pelo andar da carruagem a Procuradoria-Geral da
República, os Ministérios Públicos e agora com maior intensidade a
própria Suprema Corte de Justiça tem sido instrumentalizados por
partidos políticos de fato, mas não de direito, esposando e defendendo
ideologias que absolutamente não refletem o pensamento da maioria dos
que integram a sociedade brasileira, uma vez que nem o PGR, nem os MPs e
nem o STF receberam qualquer mandato eletivo outorgado nas urnas pelo
povo brasileiro. Ao contrário, são escolhidos e nomeados por autoridades
lidimamente eleitas pelo povo. Esse mesmo povo que, pode muito bem
olhar com séria desconfiança, tão tacanha inversão do estado de direito:
os nomeados podem destituir os eleitos.
Há
que se pensar em outros aspectos. Por qual critério podemos dar relevo a
decisão de 1 ou de 11 juízes do STF em contraposição a decisão tomada
por maioria em um universo de 594 parlamentares? Se é para desqualificar
o processo legislativo atual, porque deveríamos imaginar que decisões
do judiciário seriam consideradas mais sábias, pertinentes e mais
alinhadas com o bem-estar da Nação? Não aprendemos ainda que sempre que a
vida política de um povo é desqualificada abre-se perigosos atalhos
para a supressão dos direitos e das liberdades civis, e tem início
marcha batida para o estabelecimento de tiranias e ditaduras? E com
estas, todo o império do arbítrio, incluindo-se a violação dos direitos
fundamentais da pessoa humana e a instrumentalização da tortura como
aceitável na consecução de seus objetivos de poder?
Com
julgamento da AP-470, o escândalo de estimação da grande mídia
nacional, carinhosamente por esta alcunhada ‘mensalão”, vimos que os
debates mantidos no STF diferem muito pouco em relação aos debates
realizados no Congresso Nacional. Em um e em outro, as paixões humanas
assomam; as vaidades se encapelam; os interesses nem sempre confessáveis
afloram. Em comum a estes ambientes, apenas o uso de fingida
cordialidade. É quando se pode ouvir que “Vossa Excelência proferiu uma
rematada asneira” ou “Vossa Excelência está acostumada aos seus jagunços
do Mato Grosso” ou ainda “Vossa Excelência só deseja os holofotes da
mídia”. No mais, são esferas distintas, porque tiveram ritos de passagem
diferentes. Em uma esfera é o poder outorgado pela população que
pontifica, em outra é (ou deveria ser) o notório saber jurídico que
impera (ou ao menos deveria imperar).
A
questão da distribuição dos lucros financeiros advindos com os os
chamados “royalties do petróleo” agudiza a artificialidade da crise com
que nos defrontamos. Não é nem da alçada nem da competência do Supremo
Tribunal Federal exarar decisão final sobre o assunto. Assim como não é
competência do Congresso Nacional decidir pela composição do Conselho
Nacional de Justiça ou julgar desembargadores flagrados como
protagonistas e beneficiários em um possível ‘mercado’ de sentenças
judiciais.
Aos
observadores da cena urbana cabe chamar a atenção para as gritantes
diferenças entre o que é opinião pública e o que é opinião publicada.
Mas, sobre este clamoroso tema, voltaremos a tratar oportunamente.
Adiantamos apenas que magistrados, em especial, deveriam estar bem
cientes que opinião pública é esfera muito melhor representada pelos
representantes eleitos pelo povo. E opinião publicada é o que integra
editoriais e colunas de jornais e revistas, que fazem parte da escalada
de assuntos dos telejornais diários e que embasam nas emissoras de rádio
os Oráculos de Delfos, estes nossos sapientes e sempre erráticos,
comentaristas de política.
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(*) Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email - wlaraujo9@gmail.com
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